A Chave de Sarah (2011)

As cicatrizes do passado que ainda soluçam

“A civilização começa quando sentimos o dever de lembrar.”
— Roger Scruton

 

Alguns filmes nos tocam de forma tão profunda que é impossível sair ileso. Às vezes, é o elenco que nos atrai. Em outras, a força da história. Há também os que nos ferem com a lição que carregam. Mas o que realmente importa é quando tudo isso se funde e invade o coração — e, então, as lágrimas não pedem licença. A Chave de Sarah é um desses casos raros em que a arte se curva diante da verdade, e a memória do sofrimento alheio se transforma em testemunho.

Não nego que aprecio muito a atriz Kristin Scott Thomas, desde sua atuação no inesquecível O Paciente Inglês, de 1996. Quando aluguei A Chave de Sarah, foi motivado pela presença de Kristin na trama – e mais uma vez admirei seu trabalho. Ela vive uma jornalista estadunidense que se interessa pela história de Sarah Starzynski. Sarah é uma garota de origem judia vivendo na Paris ocupada pelos nazistas. A tranquilidade da família é rompida pelo arresto violento dos judeus, levados ao improvisado campo de prisioneiros no Vélodrome d’Hiver, onde são lançados em condições precárias. As cenas de separação dos familiares são dolorosas, desumanas e covardes.

Os fatos não representam uma simples passagem da vida, e sim uma tragédia cujos desdobramentos levam à morte pessoas que, há pouco tempo, desfrutavam do aconchego entre os seus. O pequeno irmão de Sarah ficou para trás. Por uma astúcia da irmã, ele foi trancado em um armário no quarto – e, assim, poupado de um destino quase certo: o Campo da Morte. Mas alguém precisa libertá-lo. Quem? A chave da pequena prisão está em poder de Sarah – ela não a solta, ao mesmo tempo em que suplica aos pais para voltar e salvar o irmãozinho.

O tempo passa, e sua angústia só aumenta, à medida que não consegue retornar logo para casa. A fuga é o único meio possível para tentar resgatá-lo. O amor pelo irmão e sua determinação são mais fortes que tudo. No horror dos acontecimentos, um dos guardas lhe dá ouvidos. Ela retorna. Mas já é tarde demais. Seu grito de desespero será ouvido para sempre – pois não seria mais possível viver sem as amarras de um passado tão cruel. As marcas ficam. E nos atormentam.

Dentro da história, surgem também os conflitos familiares entre Julia (Kristin) e seu marido, desviando um pouco o olhar do drama vivido pelos perseguidos. Apesar disso, o filme é bem conduzido pelo diretor Gilles Paquet-Brenner, e traz cenas marcantes. Fica difícil não se emocionar – especialmente porque envolve crianças marcadas pela selvageria dos conflitos.

O enredo revela a covardia dos franceses. Podemos até entender o medo que tinham de Hitler, mas não podemos aceitar o pacto que firmaram para deportar os judeus que viviam na França. Ainda pior foi a vigilância rigorosa e os maus-tratos impostos aos detidos. O infausto gerado pelo pecado da guerra nos mostra o quanto somos felizes por não termos vivido a mais notória representação do mal que os próprios homens – ditos humanos – fabricam. Os conflitos bélicos são o resultado dos mesquinhos interesses sobrepostos ao diálogo da razão.

A Chave de Sarah não se perdeu no tempo. Renasceu no amor de uma mulher, décadas depois, unindo uma prole que – mais uma vez – Sarah não pôde desfrutar em sua plenitude. Mais do que um filme — um testemunho. Não o ignore.

 

WhatsApp
Facebook
Twitter
Telegram
Imprimir
Picture of Walter Filho

Walter Filho

É Promotor de Justiça titular da 9a Promotoria da Fazenda Pública. Foi um dos idealizadores do PROCON de Fortaleza e ex-Coordenador Geral do DECON–CE. Participou e foi assistente de direção do premiado filme O Sertão das Memórias, dirigido pelo cineasta José Araújo. Autor dos livros: CINEMA - A Lâmina Que Corta e O CASO CESARE BATTISTI - A Palavra da Corte: A Confissão do Terrorista

Deixe um comentário