Enterrem-me sem caixão, nua e sem orações, com a face voltada para a terra…
(Nawal Marwan)
Fazia tempo que eu não assistia algo tão inusitado como este filme. O início é meio lento e o assunto chato – abertura de um testamento. Uma irmã e um irmão gêmeos acabam de perder a mãe que eles desconheciam o passado. O tabelião apresenta as exigências feitas em vida pela genitora, o que gera um desentendimento inicial entre os filhos. As cláusulas impostas passam a ser uma obsessão da filha Jeanne Marwan (Mélissa Désormeaux-Poulin), e, assim, mergulhamos no passado da falecida Nawal Marwan (Lubna Azabal). Simon Marwan (Maxim Gaudette) é o filho homem e em papel menor, só entra mais na história na reta final do drama, mas tem participação decisiva na descoberta dos fatos.
Os lugares não são importantes na história do filme, mas sabemos que o diretor canadense Denis Villeneuve fez referência a muitos massacres ocorridos nas últimas décadas em países do Oriente Médio – guerras, assassinatos, estupros e saques são retratados na película. Nawal é uma jovem mulher que foge de seu precário lugar no Líbano em busca de liberdade.
Na verdade, essa jornada torna-se uma prisão cheia de labirintos e sofrimentos, pois na tentativa de encontrar o filho pequeno que lhe foi arrancado logo após o nascimento, a jovem cristã viverá um penoso caminho. Nessa época era apaixonada por um muçulmano, o pai de seu rebento. Ela promete ao filho que um dia o encontrará – melhor seria nunca tê-lo encontrado. Os horrores experimentados jamais serão esquecidos.
A criança “roubada” passa por uma infância terrível, sendo criada em um abrigo que é destruído nos conflitos. Ela cresce num ambiente bélico e sem perspectivas de uma vida digna, vivendo na precariedade da condição humana. Já adulta é treinada por revolucionários; revela-se um exímio atirador.
A identificação do filho perdido é fruto de um acaso, quando a mãe já sem esperança enxerga na borda de uma piscina um homem com uma marca no calcanhar. Esta identificação fora feita quando ele era criança – uma astúcia de sua avó. O doloroso infausto vivido por Nawal nos atormenta enquanto cinéfilos, e nos faz refletir sobre o quanto dói para as mulheres as consequências de uma gravidez gestada por uso da violência. O estupro é um ato vil, abjeto, devendo ser repudiado e castigado severamente o mostro que o praticou.
Incêndios é daqueles filmes que chamamos de universal, atemporal e complexo e, ao mesmo tempo, imperdível. Pelas mãos do filho a mãe é estuprada, torturada e humilhada. Da monstruosidade imposta à destemida mulher nasce um casal de gêmeos: Jeanne e Simon. – filhos e irmão de um desalmado. Há uma frase dentro da obra que sintetiza muito bem esse aziago: a infância é uma faca atravessada na garganta. Dificilmente poderá ser retirada. E se essa infância é trágica – melhor tentar esquecê-la.