QUANDO A COR GRITA E A JUSTIÇA SE ATRASA
Quando já não se consegue dizer o que é preto e o que é branco, a luz se apaga e a liberdade torna-se uma prisão voluntária. (Albert Camus)
Perdidos no oceano, foram interceptados pela Marinha dos Estados Unidos. Presos e levados a julgamento, não foram tratados como homens — mas como piratas, assassinos e… propriedade.
Começava ali uma batalha judicial vergonhosa: tribunais discutindo a posse de seres humanos, ignorando deliberadamente sua condição moral, sua dor e sua dignidade. O debate era sobre quem detinha os africanos — não se deveriam estar livres.
Sem entender o idioma, assustados diante de um sistema que lhes parecia ainda mais cruel que os porões do navio, os africanos aguardavam. Mas havia um respiro: o julgamento seria com Júri. E o Júri, em tese, ainda podia ver homens onde outros viam “carga”.
A acusação foi clara: os selvagens romperam os grilhões… e rastejaram até o convés como predadores. A frase escancara o preconceito, o desprezo, a intolerância de um tempo que via na pele negra um atestado de inferioridade. Eram culpados desde o início — não por um crime, mas por existirem fora das correntes.
O elenco é brilhante. Morgan Freeman e Anthony Hopkins (O Silêncio dos Inocentes, 1991) emprestam densidade e sobriedade ao drama. Djimon Hounsou, como Seingbe (ou Cinqué), carrega nos olhos o peso da tragédia ancestral. E Matthew McConaughey é o advogado que encara o sistema — e arrisca sua reputação por um princípio.
Dirigido por Steven Spielberg (Tubarão, 1975), Amistad talvez não seja o mais festejado dos seus filmes, mas é um de seus mais corajosos. Um libelo contra o cinismo histórico.
Os flashbacks são brutais. Reconstituem as violências sofridas desde o sequestro até o embarque no Tecora — o navio negreiro original. Ali, vemos o horror que muitos insistem em amenizar: mulheres estupradas, homens açoitados, crianças lançadas ao mar. Numa das cenas mais dilacerantes, uma mãe, já vencida, se atira no oceano com o filho nos braços. Preferiu a morte à escravidão.
E é aí que o cinema cumpre seu papel maior: o de lembrar o que muitos querem esquecer. Há uma função ética na arte — denunciar, expor, gritar. Amistad não é apenas um filme sobre escravidão. É também um aviso: existem grilhões — invisíveis, sofisticados, mas presentes. Há os que veem cor antes de verem humanidade. E os que ignoram a verdade mais dura: a liberdade nunca foi um presente — sempre foi luta.
Amistad é um brado. Um julgamento que atravessa séculos. Uma cicatriz que não deve fechar.
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