O jardim por ele cultivado e a arte de fazê-lo parecem o signo de uma alienação do burocrata cumpridor de ordens.
(LG de Miranda Leão – crítico de Cinema)
A primeira pergunta é: Qual o valor de uma vida humana? De imediato alguém grita: depende! É, realmente, depende de qual vida estamos falando. Se for um americano ou um europeu a cotação pode subir. E se for um africano? Aí o valor é algo próximo, muito próximo de zero. É este o “leilão” dos canalhas.
É neste paradigma que o filme denuncia o descaso e as monstruosidades praticadas por indústrias farmacêuticas contra pessoas miseráveis que vivem no Quênia, um país da África assolado por todos os tipos de doenças infecciosas como AIDS, tuberculose, malária etc.
O desenrolar da trama é marcada pelas lembranças de Justin (Ralph Fiennes – O Paciente Inglês, de 1996) – um diplomata britânico que é deslocado para aquele abandonado continente. Ele é casado com a ativista Tessa Quayle (Rachel Weisz – Sunshine – O Despertar de um Século, de 1999), que decide investigar os procedimentos adotados pela companhia ThreeBees. A empresa está testando uma vacina contra a tuberculose na população nativa. Suspeitando que os habitantes estejam sendo usados como cobaias, une-se ao africano Arnold Bluhm (Hubert Koundé) e juntos decidem denunciar os métodos criminosos as autoridades britânicas.
A trajetória de Tessa é brutalmente interrompida: ela é assassinada ao lado de seu amigo de luta. Isto ocorre logo nas primeiras cenas. A partir daí, tudo é estilhaçado na memória do até então pacífico marido, que, diante das circunstâncias, sai em busca dos responsáveis pelo hediondo crime. O diretor Fernando Meirelles retrata a curta vida da jovem em flashbacks para mostrar ao espectador, que embora morta, ela permanece presente em toda a história – no seu idealismo indomável e na sua relação amorosa com Justin.
Sabemos que a maioria dos proprietários de laboratórios farmacêuticos não tem piedade por absolutamente ninguém, pois seu desejo ensandecido pelo lucro é capaz de levá-los a arquitetar toda sorte de crimes. O pior é saber que o sistema é conivente e aceita quase tudo que eles fazem.
O recatado diplomata sai de sua inércia e mergulha no drama vivido por sua mulher, quando descobre o quão era distante daquela que vivera ao seu lado e, ao mesmo tempo, se dedicara a uma causa humanitária – da qual por vezes ele próprio debochou. Talvez tenha despertado tarde demais.
Uma passagem retrata bem a distância abissal entre ricos e pobres, ocorre quando a garota negra Abuk é obrigada a deixar o avião durante um ataque a sua tribo: “O que acontecerá com ela? Com sorte, talvez chegue a um campo de refugiados.” Sim, ela ficou abandonada no meio de uma matança e sabemos que a sorte não estará do seu lado. Nascer e viver naquela hostil e explorada planície é ser condenado ao inferno real.
O mundo de Tessa era revestido de uma luta sublime, marcado por um ideal de justiça e respeito aos seres humanos. Sua lealdade e ousadia custaram-lhe a vida. Os fatos foram distorcidos pelas autoridades e Justin descobre que a morte de sua amada foi ardilosamente usada para desonrá-la. No início do filme, há uma insinuação de que ela o traia com Arnold. É no resgate ao ultraje atirado contra Tessa que ele, finalmente, a reencontra em um plano transcendental.
O Jardineiro … É uma denúncia fiel da miséria de seres que, mesmo diante das desumanidades, estampam sorrisos em suas inocentes faces. Já a indiferença dos poderosos é hipocritamente justificada: “Não, não há assassinatos na África. Apenas mortes lamentáveis”. Aos infames a guilhotina e aos homens de bem um jardim na existência.
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