“Tudo é precioso para aquele que foi, por muito tempo, privado de tudo.”
(Friedrich Nietzsche)
É impossível ignorar os crimes cometidos durante o período mais sombrio da Igreja Católica — a Santa Inquisição. Oficializada em 1186 no Concílio de Verona, essa máquina de perseguição e medo prolongou-se até meados do século XIX, deixando atrás de si um rastro de fogueiras e corpos carbonizados. Mas a verdade exige nuance: nem todos os homens de batina foram cúmplices. Houve aqueles que ousaram confrontar a crueldade institucionalizada. Bartolomé de las Casas, por exemplo, antes do processo contra Giordano, ergueu-se contra o massacre de indígenas nas Américas, denunciando a brutalidade dos conquistadores e a omissão dos missionários. Outros, anônimos e silenciados, também tentaram resgatar a essência da fé como caminho de justiça e misericórdia.
Foi em meio a essa era de intolerância que viveu Giordano Bruno. Nascido em Nola, Itália, em 1548, ousou pensar além dos muros do dogma. Proclamou que o universo era infinito, repleto de mundos, e que a Terra não era o centro de nada. Em 17 de fevereiro de 1600, no Campo dei Fiori, em Roma, pagou com a vida: foi queimado vivo por ordem do Santo Ofício. Seu “crime” não foi contra Deus, mas contra o monopólio humano sobre a verdade.
O diretor Giuliano Montaldo (Sacco e Vanzetti, 1971) resgata em Giordano Bruno uma página incômoda da História. Só se tornou possível narrá-la com tal riqueza de detalhes após a publicação, em 1933, da sentença oficial do caso por Vicenzo Spampanato. Montaldo reconstrói o início do martírio: a prisão em Veneza, provocada pela traição de Mocenigo — um falso amigo que se revelou verdugo.
Em Veneza, Bruno quase escapou. Seus argumentos convenceram parcialmente os inquisidores locais. Mas o Papa Clemente VIII (1592-1605), alegando “soberania” sobre casos de heresia, exigiu sua extradição. Em 1593, ele foi transferido para Roma, onde passou sete anos entre torturas e interrogatórios nas masmorras do Santo Ofício. Enfrentou acusações forjadas, testemunhas intimidadas, e jamais se dobrou.
Gian Maria Volonté, também extraordinário em Investigação de um Cidadão Acima de Qualquer Suspeita (1970), oferece aqui uma atuação soberba: transmite a dor, a dignidade e a chama indomável de um homem disposto a morrer em nome da liberdade de pensamento.
Bruno diferenciava a fé da manipulação. Dizia que existem duas religiões: a dos ignorantes, que mantém o povo no medo; e a dos doutos, que usa o saber para conduzir o rebanho com rédeas invisíveis. Em Do Infinito, do Universo e dos Mundos, lemos:
“— Ainda que isso seja verdade, não quero crê-lo; porque não é possível que esse infinito seja compreendido pela minha cabeça nem digerido pelo meu estômago…”
Talvez por isso o filme permaneça oculto ao grande público e pouco divulgado pelos donos da indústria cinematográfica. Giordano Bruno incomoda. Não apenas pela história que conta, mas pela pergunta que deixa no ar: até que ponto somos livres para pensar?
A cena final é arrebatadora. Bruno, amordaçado para não inflamar a multidão, caminha em direção à fogueira. O povo, calado e impotente, assiste — dividido entre o medo e a vergonha. Mesmo queimado, ele não foi consumido pelas chamas. Sua voz atravessou séculos. Continua a ecoar, lembrando-nos de uma verdade que os poderosos sempre tentam apagar.
A liberdade de pensar não se negocia — ela se conquista, ainda que ao preço das próprias cinzas.