À noite, eu penso em meu piano, em sua sepultura no oceano. E, às vezes, em mim mesma, flutuando sobre ele. Lá embaixo, tudo é tão quieto e silencioso, que me faz dormir.
( Ada – sobre o piano que ficou para trás)
O Piano (1993): Uma Obra de Sensibilidade e Intensidade
Pode não ser o seu filme favorito, mas certamente O Piano (1993) deixou uma marca profunda. O longa-metragem, dirigido pela neozelandesa Jane Campion, é uma obra marcante, narrada pela protagonista Ada McGrath (Holly Hunter), cuja interpretação magistral lhe rendeu o Oscar de Melhor Atriz. Na trama, ambientada no século XIX, Ada, uma mulher muda, é enviada para a exótica e inóspita Nova Zelândia, após ser obrigada a se casar com um homem que nunca conheceu.
Já na chegada, seu marido Stewart (Sam Neill) a recebe de maneira fria e irônica, comentando: Não pensei que fosse tão pequena. Em seguida, pede a opinião do amigo George Baines (Harvey Keitel – Cães de Aluguel, de 1992) sobre a esposa, evidenciando a indiferença com que a trata.
Uma das cenas mais simbólicas do filme ocorre logo depois, quando Ada sobe uma montanha e, ao olhar para a praia, vê abandonado o que mais ama: seu piano, que ficou para trás por ser pesado demais para ser carregado. O vazio que emana de seu olhar nesse momento traduz a dor de uma perda irreparável, como se o instrumento fosse uma extensão de seu próprio corpo. Sua outra razão de viver é a filha, Flora (Anna Paquin), cuja atuação surpreendente, mesmo tão jovem, lhe garantiu o Oscar de Melhor Atriz Coadjuvante. Curiosamente, a atriz não pôde assistir à estreia do filme devido à classificação indicativa, já que tinha apenas 11 anos na época.
O estimado piano Broadbent acaba sendo trocado por terras por Stewart, em uma negociação com o vizinho Baines. Para manter contato com seu instrumento, Ada aceita dar aulas de piano ao rude vizinho, que, no entanto, tem segundas intenções. O filme nos faz refletir: até que ponto somos capazes de ceder nossos princípios para nos manter próximos daquilo que amamos? A vida sem o piano seria insuportável naquele mundo hostil.
Com o desenrolar das aulas, Baines propõe um jogo de sedução, onde cada tecla tocada representa uma concessão íntima. O relacionamento entre eles se torna perigoso, já que Ada é casada com um homem incapaz de compreendê-la ou conquistá-la. Ao descobrir o caso amoroso, Stewart reage com brutalidade, trancando Ada em casa e proibindo as aulas. No entanto, essa prisão apenas intensifica a paixão da protagonista, que tenta manter contato com Baines através de sua filha. O clímax da história ocorre quando Flora, inesperadamente, trai a mãe ao revelar tudo ao padrasto. Por quê? Essa é a pergunta que ecoa na mente do espectador.
As consequências da traição são trágicas: tomado pela fúria, Stewart amputa um dos dedos de sua mulher com um machado. A cena é de um vigor intenso e perturbador, sintetizando o controle absoluto que ele tenta impor sobre a esposa. Seu gesto brutal é acompanhado da frase: Cortei sua asa, só isso. Esse ato de violência marca o fim definitivo da relação entre eles, permitindo-a finalmente encontrar a liberdade nos braços do amante.
Na travessia rumo a uma nova vida, Ada toma uma decisão simbólica: permite que seu piano seja lançado ao mar. O instrumento, que sempre foi sua voz, é sacrificado, marcando o encerramento de um ciclo. No entanto, a libertação não significa silêncio – aos poucos, ela recupera a fala perdida na infância, sinalizando sua transformação.
A direção de Jane Campion foi amplamente reconhecida, e O Piano se tornou uma referência no cinema mundial, destacando-se não apenas pela sua narrativa intensa, mas também pela fotografia deslumbrante e o figurino impecável. O filme nos ensina que, quando nossas palavras falham, nosso olhar e nossas escolhas podem falar por nós. Vale a pena conferir essa obra-prima e se deixar envolver por sua profundidade.